domingo, 18 de abril de 2010

A última viagem de bonde...

Para Simone...




Já se acostumara ao caminho do bonde, tantas vezes da Mooca ao Bresser, o vagão lotado, as pessoas sorrindo, outras tristes....Pena que aquela seria a ultima viagem do bonde. Soubera nos jornais, que o governo tinha uma nova proposta de modernização das cidades. Achava ruim a modernização, "onde já se viu, tirar o bonde, patrimônio cultural...."

Aproveitava aquela ultima viagem como um deleite. Há quase cinco anos, desde o fim do curso normal lecionava em um grupo escolar e para ir trabalhar, pegava aquele trajeto todos os dias.
Todas as manhãs, esperava pelo bonde, e nele, ia cantando, refletindo e lendo. Ultimamente tinha descoberto Clarice Lispector e quase enlouquecera: “Meu Deus, uma mulher escreve dessa maneira?!!”. Sentia uma verdadeira felicidade clandestina ao ler todas aquelas palavras que torturavam e mergulhavam na alma. Naquele dia, em sua última viagem de bonde, lia Uma aprendizagem ou o livro dos Prazeres. Será que alguém pode ensinar ao outro a ter prazer?. “Pode sim, pensava”, afinal, Lori aprendia com Ulisses que a vida pode ser prazerosa e dolorosa, que em alguns momentos de nossas vidas, fingimos que amamos e que somos amados... Naquele dia, em meio ao deslizar lento do bonde sobre os trilhos, ela se deliciava com Ulisses e refletia sobre o que é o amar. Ela, que até então, nunca tinha sido amada, ela que não fazia a minima ideia do que era o amor, o pulsar do coração, o olhar tenro, a garganta seca...Só conhecia o amor dos livros: o poemas tristes de Camões cantando um amor dilacerado, a tranquilidade dos versos de Dirceu e sua Marília, ou o martirio do amor De Julieta e Romeu, amor universal, amor, sinônimo do sofrer e de um pesar quase irmanados.

Quase no ponto final, depois de passar por mais uma estação, percebeu que estava sozinha no bonde. Coincidência, uma viagem só para ela...Foi quando, como num conto de fadas barato, ou num desses poemas de Baudelaire, surge um desconhecido. Alguém que nunca vira antes, estranho, olhos garços, sorriso sutil. O olhar sobre ela foi de um efeito indescritível. Tantos lugares para se sentar e ele foi ter justamente ao seu lado. Receosa, tremendo, com o livro nas mãos, podia escutar o retumbar do coração que agora insistia em palpitar aceleradamente. "O que é isso meu Deus, porque estou me sentindo assim"...Sentimento estranho, que anestesia e envaidece.

Sem querer, seus lábios retribuíram o olhar tenro do rapaz. Agora ela estava ali, perdida, ao lado de um estranho, naquela ultima viagem de bonde, do seu bonde...
Sem perceber, sem dizer nada, sem falar, o rapaz pegou-lhe nas mãos e o toque de seus lábios nos pequenos dedos habituados ao giz, a fez sussurrar por dentro.

A viagem finalmente chegara ao fim, “não, meu Deus, essa viagem não pode terminar nunca!!!”. O rapaz sorriu, se levantou, tomou um bloquinho de notas, escreveu no bilhete e lhe entregou. Na parada, um último sorrir e o acenar das mãos que desaparecia à medida que o bonde se distanciava. Com ela, um sentimento de tristeza e felicidade roubada.
"Será esse o amor da minha vida?" Com o bilhetinho suado nas mãos, abriu-o como se toca algo precioso. Ao lê-lo, um sentimento de desespero, de perda, de modernidade: “te encontro amanha no mesmo bonde, na mesma hora”.... "Como assim? Essa é a ultima viagem do bonde, amanha não terá outra, como encontrá-lo, como tê-lo novamente". O bonde chegou ao seu destino, ela finalmente desceu, ainda anestesiada pelos sentimentos e pela nova pessoa que se fez num curto instante de sensações. "Amanha não terá mais bonde, só ônibus, a modernidade tirara talvez algo que eu nao sei o que é".
A partir daí e nos dias que se passaram, nada mais de leitura, nada mais de Clarice, só o contemplar de dentro do ônibus, os vários pontos que vinham e passavam diante dos seus olhos angustiados a espera daquele olhar.O que se tinha apenas eram as pessoas que entravam e saíam do onibus contemplando felizes a modernidade da cidade que, aos poucos, ia nascendo em meio aos trilhos perdidos daquele bonde que se fora...

2 comentários:

  1. Tenho verdadeira loucura por este escrito... é demais...

    ResponderExcluir
  2. tipo assim... uou!
    fiquei fascinada por cada palavra escrita...

    ResponderExcluir